segunda-feira, 24 de agosto de 2009

“O meu nome é legião” de António Lobo Antunes


Há uns quantos livros mas, sobretudo, uns quantos autores que, na minha opinião têm de ser lidos com a disposição certa, no momento certo, com tempo para deles podermos tirar o máximo proveito.

Foi, para mim, o caso de “O meu nome é legião”. Há já muito que o tinha pronto para ler e a verdade é que tinha vontade de o fazer. Contudo, apenas há pouco tempo entendi que estava preparada para o usufruir.

Li-o e, de imediato, voltei a lê-lo. Não que o não tenha compreendido na primeira leitura, mas sim pelo enorme prazer que me deu fazê-lo e porque me custou deixá-lo. Não queria.

Essa dupla leitura permitiu-me também parar e absorver mais intensamente algumas partes de uma beleza única. Aquelas por onde se consegue pressentir a beleza, o sentimento, onde só parece existir fealdade, desencanto, desamor, negação, dor… (O sentir do autor?)

O livro é, desde o primeiro capítulo até ao último (foram, aliás, estes dois os meus preferidos), um verdadeiro tratado literário; um prazer de leitura só por si.

Escrito em vários registos, pretende contar a história de um bando composto por oito jovens de idades compreendidas entre os doze e os dezanove anos, mestiços, um preto e um branco, todos residentes num bairro socialmente desfavorecido, onde prevalece o vazio cultural e afectivo associado às privações materiais mais prosaicas que se dedica a actividades criminais.

Essa história que se inicia de uma forma bastante normal, sob a forma de relatório policial seguido de depoimentos testemunhais, vai dando lugar ao deambular indomável dos pensamentos mais profundos das personagens que vão desfilando sob os nossos olhos num intrincado discursivo que torna por vezes difícil identificar a personagem. E terá isso tanta importância?

Serão as personagens assim tão diferentes nas suas reflexões, nas suas deambulações?

Todas provêm de fantasmas do passado, do abandono, da solidão, do sofrimento, da injustiça, de obsessões, da ausência, de debilidades, de abusos de dores, de violências…

Todos são seres despedaçados pela vida que têm (que não tiveram), que não têm… Todos se vêem a braços com contendas interiores que não sabem como resolver. Que não resolvem. Que nem são para resolver…

Enfim, simplesmente magistral. António Lobo Antunes inconfundível e irrepetível (se bem que por vezes, não fácil), nesta sua capacidade de dominar plenamente um estilo narrativo delicado. Este, de entrecruzar as vidas, os sentimentos, as lágrimas negadas, as que caem, os relatos de desesperança, a negação de memórias das suas personagens.

Se todo o livro foi para mim uma necessidade premente, o último capítulo, mais excelente ainda, no meu ponto de vista, deixou-me sem fôlego.

Fantástico.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

“13 gotas ao deitar” de Alice Vieira, Catarina Fonseca, Leonor Xavier, Luísa Beltrão, Rita Ferro e Rosa Lobato de Faria


Terminei ontem à noite este pequeno (202 páginas) e delicioso “romance” que se lê de uma penada.

A exemplo do que aconteceu com outros livros já publicados (“Os novos mistérios da estrada de Sintra”, o “Código de Avintes”…), juntaram-se uns quantos autores da nossa praça, neste caso apenas autoras, seis, e, de capítulo em capítulo, foram urdindo uma trama fantástica. Eu atrever-me-ia mesmo a utilizar um neologismo de autoria desconhecida: fabulástica!

Não podemos descurar o facto de ser o primeiro livro deste género a ser escrito sem ter por base uma obra literária anterior. Todo ele é inventado mesmo ali.

De enredo algo alucinante (talvez também um pouco alucinado) até porque, de capítulo em capítulo, as pistas tendem a apontar em para direcções diferentes se não contraditórias, este livro aborda o romance, o policial, o mistério e o humor.

De escrita excelente se bem que despretensiosa, olhemos para os nomes das autoras, é um livro muito, mas muito divertido. E rir, quando com qualidade, faz bem à alma esteja esta onde estiver…

Estou daqui a imaginar o quão divertido deve ter sido para estas seis autoras urdir, em cada capítulo, armadilhas para complicar o próximo sem, contudo, tirar a coerência necessária à história.

Sem dúvida a ler se tem tempo e gosta de algo divertido.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

“Os passos da cruz” de Nuno Júdice


Sou apreciadora de Nuno Júdice enquanto poeta. Como tal, vou lendo também a sua prosa pois entendo que quem escreve poesia da forma que ele o faz só pode escrever bem.

E escreve. Em relação a isso não restam dúvidas de espécie alguma. Uma escrita excelente, que foge aos cânones tradicionais (não é de leitura à tout cours) e nos transmite a sua sensibilidade através da beleza das palavras e da sua utilização precisa.

Nuno Júdice faz-nos, acompanhando o seu personagem, na actualidade, seguir os passos de uma figura histórica, se bem que bastante obscura e remota em termos de consideração, que terá existido e tido algo para nos contar aí para os finais do século XVII.

Esta mulher, pois de uma mulher se trata, teve uma vida atribulada depois de entregue em casamento a um fidalgo arruinado que mais não pretendia do que o seu chorudo dote. Mal tratada pelo marido, obrigada a actos que a revoltavam e repugnavam, acabou por fugir para um convento onde terminou a sua vida como religiosa.

Nesse convento, em Santos (Lisboa), terá deixado uma auto-biografia. Esse documento é precioso como objecto de análise dos costumes, dos modos, revelados por uma sociedade em grande conturbação em que a própria Corte era o paradigma dos maus exemplos.

Ora, acompanhando o personagem nesta demanda, acabamos por ir ter a uma aldeia esconsa onde terá vivido Antónia Margarida (a tal dama que, depois de se soltar de um casamento tormentoso se recolheu ao convento de Santos).

É aí que começa verdadeiramente a novela. Tudo se entrecruza no tempo. É o passado que já não é passado e está a ser vivido no presente, é o presente que afinal está a ser vivido ainda num terceiro tempo….

É um entrelaçar tão estreito de três tempos históricos diferentes que, por vezes, é difícil separá-los. O próprio personagem com quem vamos acaba por se desencontrar duvidando mesmo da sua identidade.

É uma novela que, a meu ver, tem como tema fulcral a meditação sobre o Tempo e o seu desenrolar. Aliás tema já não novo para Nuno Júdice este entrecruzar de vários Tempos. Podemos encontrá-lo desenvolvido com notável mestria no seu livro “O Anjo da tempestade”.

É um livro bom, bonito, agradável de ler. Contudo, confesso que continuo a preferir o Nuno Júdice poeta…

domingo, 9 de agosto de 2009

“No teu deserto” de Miguel de Sousa Tavares



Li a maior parte dos livros de Miguel de Sousa Tavares e, todos eles, me proporcionaram deliciosos momentos de leitura.

Uns, excelentes crónicas de viagens, tiveram o condão de me conduzir a locais nunca por mim imaginados, exóticos destinos que me proporcionaram momentos de aventura e de adrenalina. Outros, belíssimos romances de cariz histórico transportaram-me através da linguagem despretensiosa, despida, de alguém para quem a comunicação é um acto físico, a momentos bem significativos da nossa memória colectiva de portugueses, “sentada” na ficção.

É claro que comprei este tão depressa o vi nos escaparates da livraria.

Hoje li-o na praia. É pequeno, tem 125 páginas.

Contudo são cento e vinte e cinco páginas em que o autor se expõe nas palavras simples, auto-biográficas, algumas no feminino (não tão auto-biográficas), com que prende irremediavelmente o leitor.

E tem razão, Sousa Tavares, quando lhe chama um “quase romance”. É um “quase romance”porque não chega a sê-lo; falta-lhe aquilo que só agora foi dito. Quiçá demasiado tarde para que fosse um romance. É também quase uma crónica de viagem mas faltam-lhe os inúmeros pormenores que sempre povoam as suas aventuras de viajante compulsivo.

É, quanto a mim, muito simplesmente uma história do muito que ficou por dizer a alguém e que nunca mais poderá ser dito.

Gostei.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

“A Ofensa” de Ricardo Menéndez Salmón



Experimentei a leitura deste livro por ter sido considerado por diversos órgãos de comunicação como o melhor romance espanhol de 2007. Além disso ganhou vários prémios de prestigio.

Como gosto de experimentar autores novos, lá chegou a sua vez.

É um livro pequeno com as suas 128 páginas mas deveras intenso. Direi mesmo algo inquietante, estranho. E, todavia, tão real.

Aborda essencialmente a análise do Medo e a forma como este afecta o ser humano. Portanto intenso e tremendamente emotivo.

Tudo se passa em torno de uma personagem, Kurt Kruwel. É alemão, alfaiate, vive com o pai, mãe e irmã, tem uma namorada (judia), toca na Igreja local e, de um instante para o outro, porque deflagra a II Guerra Mundial, se vê impulsionado para algo que lhe é completamente estranho.

Passa de uma vida calma, programada, estável, sem ambições, em que tudo corria automaticamente, para algo para o qual não estava minimamente preparado. A guerra com todos os seus horrores inacreditáveis.

Confrontado com uma primeira situação que não consegue suportar, soçobra completamente e perde a sensibilidade física e emocional.

Interessante a forma como nos é apresentada esta guerra. É-nos dada uma perspectiva muito incomum do agressor, do alemão que, neste caso é também a vítima.

Tem um pequeno apontamento de romance, assaz estranho, e prossegue para um final, no meu ponto de vista, um pouco fantasioso demais. Sai dos parâmetros do real para o incontestável fantástico.

Mas será que saiu? Será a realidade do enredo ou o sonho da personagem?

Fica a questão para ser respondida por quem o ler a seguir.